Ainda um pouco abalada com a vida como ela é ou como tem deixado de ser
Eu, que tantas vezes expus o que nem precisava, vou de novo surfar nessa da. Não consigo identificar – embora esteja muito perto – o que me entristece profundamente com relação à perdas coletivas e visceralmente sentidas, como a trágica e precoce partida de Domingos Montagner. Nunca o conheci pessoalmente, apesar de me parecer próximo, familiar, o cara do balcão da padaria e cafezinho. O sorriso. Aquele sorriso. Temos conhecidos e até amigos em comum com os quais partilhei a desolação nas redes sociais através de fotos e inúmeras declarações de amor. A cada dor declarada, eu repetia como um mantra, precisando do conforto: “assim é a vida. assim é a vida. bola pra frente.” Mas aquela angústia de quem está recebendo do universo a consternação através dos vários lamentos, mudou o dia. Sabe aqueles dias que ficam estranhos? O dia ficou estranho.
Triste, sim. Muito. Querendo saber de a turma do mal consegue se esconder das peças que a vida prega. Não desejo o fim de nenhuma existência, mas a seleção poderia ser mais generosa conosco, imperfeitos e tão precisados de exemplos. E Domingos era sim, exemplo. Exemplo de amar a sí mesmo, amar seu pais. Um cara simples. Um líder que a ficção pegou emprestado. E que hoje os índios da Tribo Fulni-ô homenagearam num ritual.
“Por que estão querendo trazer a alma dele de volta? Ele nasceu de novo hoje. Ele se tornou um novo protetor do rio São Francisco”
… porquê precisamos ainda dessa alma, dessa energia, dessa força, dessa proteção. Domingos Montagner, Ator maiúsculo, entregue ao ofício e a socialização da alegria de viver de sua fé e glória. que, além de egoístas, somos pequenos precisando de guias, de sorrisos como os dele. Tão certo quanto a qualidade de seu trabalho é a exclusividade desse homem. Montagner era daqueles de não haver outro e poderia ainda tocar muitos corações e mentes se emprestando às massas através das novelas, filmes e o que mais atingisse o maior número de pessoas. Tocar as pessoas. Exercer a arte que nos salva dessa loucura toda. E aí fere, fere fundo quando uma pessoa que se empresta à nós contra o horror de um mundo que vem se estragando através de um olhar, um sorriso, uma piada vai numa passada de perna do destino. De repente. Arrastado.
Que continue o exemplo do que é ser ator e não celebridade. Do que é ofício e não agito.
Que neste quadrado-retângulo de se vende panelas com a mesma entonação de voz com que se acusa um assassinato ou narra-se uma perseguição de helicóptero, volte o merecimento. Pelo retorno do respeito à profissão, à ética, à vida frágil. Que o espetáculo que poderá surgir nos próximos dias toque os não-políticos profissionais, mas os que exercitam a política em suas vidas comuns. Pela vida leve, de boa, sem truques nem truqueiros e falsos talentos.
Que geração a sua, Domingos… ! Que aqueles que hoje gabam-se da descoberta da pólvora azul e de fundar museus de grandes novidades compadeçam-se de sí diante de você e sua criação. Um homem simples e tão honesto em sua fé e profissão que criou o NOVO que tanto precisamos. Um HOMEM BOM. Competente. É disso que sinto muito.
Sinto muito. E persistindo na fé.
reprodução: instagram
Fonte: Carmen Farão